O ponto de partida é observar as estatísticas que revelam que 3 das 4 maiores enchentes do Rio Grande do Sul ocorreram nos últimos 9 meses. A primeira grande enchente aconteceu em 1941 e virou lenda entre os gaúchos. Na ocasião, inundou uma boa parte do centro de Porto Alegre e alguns campos na zona norte antes de virarem bairros populosos, além de praias de água doce na região sul da capital que hoje configuram-se como zonas residenciais. O intervalo entre a primeira e a segunda enchente foi de 83 anos, mas entre a terceira e a quarta é de apenas 8 meses.
É mais fácil pensar que tudo isso é obra do acaso e que o universo está conspirando contra o povo gaúcho ao aplicar este castigo severo. O caminho mais difícil é aceitar a realidade sobre as mudanças climáticas no planeta. Deixar de acumular bens de consumo e parar de gastar em excesso é um sacrifício muito grande, o desperdício e a falta de necessidade só é percebido quando aparece inutilizado, boiando dentro das casas inundadas. Economizar os recursos naturais só é válido quando não temos alternativa. Descartar resíduos sólidos misturados com resíduos orgânicos ainda é uma realidade na maioria das cidades e só será viável enquanto houver incineração ou aterro sanitário, herança deixada pelo modelo de consumo linear. Em um passe de mágica tudo se resolve, é só fechar o saco de lixo e tirá-lo do alcance dos olhos.
Quando os níveis das águas baixarem, a cidade e as pessoas terão que buscar forças para se reorganizarem, a maioria das habitações serão reconstruídas e mobiliadas, onde irá parar todo esse resíduo inutilizado pelas águas contaminadas? Quem dará conta de recolher e destinar para reciclagem? A natureza absorverá esse grande volume de coisas sem deixar rastro? Quantas lembranças serão perdidas, fotos, documentos e arquivos pessoais. Cada gaúcho de alguma forma, despejará no mar através das correntezas uma parte da sua história.
Vamos imaginar que a sua cidade está com todos os acessos fechados e não tem mais como escoar o resíduo e nem receber mantimentos, como você faria para sobreviver? Essa é a realidade de muitos municípios do Rio Grande do Sul nestes primeiros dias de tormenta. Os supermercados começam a revelar o fundo das suas prateleiras e as embalagens começam a se mudar das gôndolas para os containers de lixo localizados nas zonas mais altas da cidade. Nas regiões atingidas pela enchente, tudo o que a água alcançou desapareceu. Espero que as redes de lojas que estão abastecendo a população devolvam parte dos seus lucros para auxiliar nesta retomada lenta e dolorosa.
Nas proximidades da enchente, o cenário é devastador, as pessoas estão sem saber o que fazer vendo seus parentes e amigos desaparecerem ou perderem suas casas ou suas empresas, construídas através da doação de uma boa parte do tempo de suas vidas. Nos bairros mais afastados, percebe-se a tentativa de levar uma vida normal e uma impressão de que nada está acontecendo, até começar a faltar água nas torneiras, luz e principalmente sinal de internet. O prefeito comentou “saiam da cidade enquanto é tempo”, deixem os recursos escassos ainda disponíveis para as pessoas que não tem para onde ir ou para os que necessitam permanecer por motivos profissionais ligados a assistência aos desabrigados. Parem de gastar o desnecessário. Redobrem a atenção nas ruas pois existem golpistas e saqueadores se aproveitando da situação.
É muito difícil para o modelo atual consolidado pensar em otimizar recursos e reduzir o consumo enquanto ele está disponível, é o fenômeno do pacote de biscoitos na gaveta do escritório, enquanto ele estiver ali será consumido até acabar, mesmo sem a necessidade de sobrevivência, apenas por ansiedade. Muitos países enfrentam sérios problemas com a falta de abastecimento básico para sua população. A água que molha os lindos jardins poderia garantir a sobrevivência de muitas crianças ao redor do planeta. Este fato não é nenhuma novidade, mas ainda não é encarado como prioridade, bem como os reflexos que estão sendo causados pelo impacto ambiental no planeta.
Este exercício de refletir e voltar para a verdadeira essência do ser humano é muito dolorido, nos acostumamos muito fácil com o conforto que a vida moderna nos proporciona, é convidativo consumir e transferir para os artefatos e para os alimentos condimentados todas as nossas frustrações do dia a dia. A pandemia nos ensinou muito pouco, na primeira oportunidade de sair para rua, voltamos a consumir desenfreadamente. O planeta respirou um pouco melhor enquanto estávamos vivendo de maneira contida, por que não continuamos?
As embalagens são importantes para a circulação de alimentos e bens de consumo no planeta. Nos momentos mais difíceis como esta tragédia que atinge o Rio Grande do Sul, elas estão ali através de garrafas, ampolas ou pacotes, dando suporte para os necessitados que chegam de todos os cantos alagados.
De uma maneira geral, o desperdício é desnecessário, mas isto só é percebido quando sentimos falta de necessidades básicas para sobreviver. Desejo profundamente que após mais essa tragédia, repensemos sobre as nossas atitudes, que tenhamos tempo para aprender, contemplar e refletir sobre a essência da vida e que tenhamos ações efetivas, deixando de lado os créditos e as siglas.
Precisamos encarar o problema, olhar para o lixo que geramos, reduzir o consumo de tudo, evitar desperdícios, desenvolver artefatos úteis pensando da matéria-prima ao resíduo. Espero que os projetos de embalagem priorizem a sua relação com o ser humano e com o planeta e que sirva de suporte para auxiliar a humanidade em seu desenvolvimento, sem deixar rastros ou reflexos que possam causar mais catástrofes pelo mundo. A crise climática é anunciada pelos povos originários desde sempre, vamos escutá-los!
“Desejo ações efetivas, deixando de lado os créditos e as siglas”
Ricardo Sastre;
Gaúcho, Porto Alegrense;
Porto Alegre, Madrugada de 07/05/2024